Quem ama mata?
Justiça e perdão nos crimes passionais
Ana Maria Alves Machado
Li recentemente o livro “A paixão no banco dos réus”, de autoria da procuradora de Justiça, Luiza Nagib Eluf. No enredo do livro, lemos sobre os 13 crimes passionais mais famosos do país, que remontam ao ano de 1873, quando o desembargador Pontes de Visgueiro matou a namorada, e chegam aos dias atuais, com o assassinato de Eloá Cristina Pimentel por Lindemberg Alves. Após a narrativa dos homicídios, a autora descreve a solução dos casos, através dos julgados do Tribunal do Júri, mostrando que, em algumas vezes, a Justiça puniu os culpados, sob forte clamor popular, e, em outras, os perdoou, deixando à população o sentimento de impunidade.
São consideradas, ao longo da narrativa, as teses apresentadas pela defesa e pela acusação em Tribunal do Júri, o que me fez examinar a histórica mudança de paradigmas, a cerca dos direitos fundamentais que envolvem os crimes passionais no Brasil. Uma prerrogativa disso está, por exemplo, nas declarações narradas nos primeiros enredos que alegam “legitima defesa da honra” como motivo principal para o cometimento do delito. Ao se reputar a esse ensejo, o réu adquiria certa respeitabilidade no meio social, ao passo que a vitima, geralmente a mulher, era aniquilada em seus direitos mais elementares,sendo o primeiro deles o direito à vida.
Hoje, a Constituição Federal de 1988, em seu Art. 5ºI, assegura a igualdade de direitos entre homens e mulheres e a tese de “legitima defesa da honra”, além de não ser mais socialmente aceita, pode incitar à descriminação de gênero que tem punição prevista em lei. Ao analisarmos que o que motiva o crime passional é a relação de poder do assassino com a vítima, constatamos que o amor verdadeiro não leva ao crime e que a legítima defesa da honra não pode mais ser utilizada para justificar o assassinato.
Crimes hediondos são delitos que recebem um tratamento legal mais severo, não havendo possibilidade de fiança, nem cumprimento de pena em regime aberto ou semi-aberto. O Casal, Paula e Guilherme de Pádua, não foram atingidos pela lei de crimes hediondos, porque o assassinato foi cometido antes da inclusão do homicídio como crime hediondo. Eles ficaram presos por sete anos e foram beneficiados com progressão no regime prisional, cumprindo parte da pena em liberdade condicional.
Justiça ou perdão? Quando ficou sabendo dos benefícios que os condenados pela morte de sua filha receberiam da Justiça, Glória Perez fez uma declaração à imprensa:”Minha luta acabou. Mesmo que Paula e Pádua deixem a prisão em breve, simbolicamente, eles foram condenados pelo resto da vida”.
Observamos que várias foram as formas de julgar os crimes passionais aqui expostos. Ao longo da história, e na medida em que as normas penais foram ficando sutilmente desprovidas de certo teor patriarcal e machista, as penas foram sendo aplicadas com mais justeza, ou seja, no sentido da qualidade do que é justo, do que é exato. A antiga tese de “legítima defesa da honra”, os jargões de “matei por amor”, “estava fora de mim, possuído pelo ciúme”, hoje são indefensáveis.
A despeito de crimes passionais, é preciso explicar que esse delito é uma combinação de antagonismos. É um misto entre amor e ódio, alegria e tristeza, perdão e vingança, ternura e ferocidade. Nesse misto de sentimentos temos a extrapolação do agente subjetivo que indica o elemento motivador do crime: a paixão.
Não é à toa que para os filósofos do estoicismo a paixão era irremediavelmente má; pois era tida como um movimento irracional, como um vício da alma. De tal forma, a única atitude do homem sábio deveria ser o extermínio total da paixão, para dar lugar somente à razão. Os epicuristas acreditavam que a vida ideal do sábio, que almeja a liberdade e a paz como bens supremos, consistiria na abnegação a todos os desejos possíveis, aos prazeres positivos, físicos e espirituais; e, por conseguinte, em vigiar-se, no precaver-se contra as surpresas irracionais do sentimento, da emoção, da paixão. A paixão faz sofrer o corpo, por isso, para estar tranqüilo; não ser perturbado no espírito, é imprescindível renunciar a todos os desejos possíveis, visto ser o desejo inimigo do sossego. Os sofistas contrastam paixão e razão, na medida em que cria uma desordem manifesta no homem, em que o corpo é inimigo do espírito e se opõe ao intelecto.
Nos primeiros crimes, percebe-se, embora equivocadamente, que o crime passional, no fim do século XIX e em boa parte do século XX, por ser cometido por paixão, fazia com que o comportamento do assassino fosse avaliado como algo nobre, que esse ato de cometimento de um crime lhe fosse assegurado como forma para preservar sua honra, sua posição hierárquica na família e sua dignidade social. No que tange à punição ao crime passional, o atual Código Penal rompeu com uma prática jurídica anterior, pois a lei penal isentava de pena o agente que tivesse praticado o fato sob a influência de "completa perturbação dos sentidos e da inteligência", o que era, por muitos, considerada como uma "válvula de impunidade" dos homicidas passionais. Atualmente isto não acontece, pois o crime passional é considerado hediondo.
O crime passional não pode ser confundido com a atenuante de violenta emoção, prevista no Código Penal, que é aquela em que o agente pratica o crime sob "violenta emoção", logo após injusta provocação da vítima. O que vige no Código Penal é que a emoção ou a paixão não exclui a culpabilidade de quem fere ou mata outra pessoa. Portanto, para o direito penal positivado na norma escrita, não há tratamento específico e mais brando para o crime passional.
Ao contrário, se entendermos que o ódio, a inveja ou a ambição pode ser fruto de uma paixão incontrolável (ou, ao menos, difícil de ser controlada), temos de admitir que a lei não só não atenua a culpabilidade do agente, mas considera a conduta como uma forma qualificada de homicídio, muito mais grave pela maior quantidade de pena e, também, pelas conseqüências repressivas resultantes do fato ser considerado como crime hediondo.
Deste modo conclui-se que o direito penal atual, entende que tanto a emoção quanto a paixão (a primeira, uma manifestação do psiquismo ou da consciência humana mais fugaz e passageira, a segunda mais duradoura e prolongada) não excluem a imputabilidade do agente, pois o bem jurídico maior - a segurança coletiva- não pode transigir com a idéia de eventual e completa absolvição do homicida passional, mesmo nos casos de ter o agente se conduzido sob a influência de forte emoção ou paixão.
Justiça ou perdão? Com relação à Justiça, nas leis estão previstas todas as punições para o descumprimento do que foi estabelecido nos códigos e essas leis foram elaboradas de modo a tratar todos de forma igual, como única maneira de controlar as ações individuais. No entanto, visto que as pessoas têm comportamento diferente entre si, então, como saldar dívidas com a Justiça pode significar cumprir a pena determinada na condenação? Quais os fatores coletivos estipulam o valor da vida em anos de prisão ou, simplesmente, de cumprimento de 1/3 da pena, com possibilidade de progressão dessa pena por ‘bom comportamento’? O que é que define o ‘bom comportamento’ de uma pessoa que matou outrem por motivo fútil?
O perdão é um ato individual que envolve valores intangíveis e não exige a reparação dos danos causados pelo culpado. Não segue regras preestabelecidas. Cada caso é um caso, sendo descartado o recurso da jurisprudência. Dispensa documentos e satisfações a terceiros selando essa decisão. Significa mais uma reconciliação do que o resultado de um julgamento. Quem tem que perdoar é a família da vitima, os pais, os irmãos, os amigos? Como esse perdão repara o crime praticado?
A Justiça, por outro lado, para ser verdadeiramente justa precisa de regras definidas que têm de ser obedecidas independentemente de credo religioso, posição social e vontade pessoal. Onde o perdão é uma concessão muito rara porque pode ser entendido como fraqueza no cumprimento da lei. A condenação ou absolvição, para ser considerada eqüitativa, deve primar pela imparcialidade e pela transparência. Por isso, a Justiça não perdoa ninguém, apenas sentencia a culpa ou a inocência do réu. Quase todo condenado por crimes passionais, quando vai para a prisão, é esquecido, após a espetaculosa condenação no Tribunal do Júri, quando só então réu e os familiares da vitima são exaustivamente expostos na mídia. Depois, com o passar dos anos, caem em total esquecimento. Tanto a Justiça quanto o perdão só voltam à baila quando um novo caso, geralmente com as mesmas prerrogativas dos anteriores, é transcrito nas páginas policiais. A pergunta é sempre a mesma: “Quem ama mata?”
quinta-feira, 29 de abril de 2010
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