A novela “Abril despedaçado”, do escritor albanês Ismail kandaré, foi publicada pela primeira vez em 1978. Ambientada nas montanhas da Albânia, consiste em uma narrativa fragmentária, que ora se foca na viagem de lua de mel do intelectual Bessian com sua jovem esposa Diana, e ora se ocupa das angústias de Gjorg, jovem na casa dos 20 anos que se vê obrigado a participar de uma espiral de vingança sanguinária prevista no “kanun”, o código de direito consuetudinário vigente no interior da Albânia até as vésperas da Segunda Guerra Mundial.
Uma das normas mais atrozes do “kanun” não apenas autorizava, mas praticamente impunha à família de alguém assassinado o direito/dever de também matar o algoz de seu familiar. Era a chamada “dívida de sangue”, que Gjorg, o personagem principal, é obrigado a cobrar. Trata-se, portanto, de um “instituto jurídico?” semelhante à mundialmente famosa “vendeta”, comum na ilha de Córsega.
Contudo,não bastava ao familiar do morto simplesmente tirar a vida daquele que matara um membro de sua família. Era necessário pagar o “tributo do sangue”, assim como hodiernamente os recorrentes devem pagar o preparo. O tributo de sangue era, portanto, uma espécie de condição de procedibilidade. A satisfação do direito/dever de matar estava subordinada ao pagamento de um imposto ao senhor feudal. Nesse ponto kandaré é brilhante ao demonstrar como a tradição da vingança se revestia de relevante importância econômica, contribuindo sobremaneira com o crescimento das fortunas da classe credora dos tributos. Aqui reside também o mais importante paralelo a ser traçado entre o Kanun e o direito pátrio.
Com efeito, é demasiado importante que os operadores do direito questionem a todo o momento quem são aqueles que se beneficiam com uma legislação penal intolerante e, sobretudo, contra quem recai essa intolerância. A título de exemplo, pensemos na situação de um indivíduo indiciado por descaminho, e cujos tributos devidos ao Estado não ultrapassem R$ 10.000 (dez mil reais). O que acontecerá com ele? Nada, pois nossos tribunais entendem que, pelo fato da Procuradoria da Fazenda Nacional não se ocupar com dívidas inferiores à quantia mencionada alhures, tal conduta não se reveste de tipicidade material. Cientes disso, é de praxe entre os membros do parquet requererem o arquivamento de inquéritos nesses termos. Em outros termos: perdoamos todos aqueles que se furtam, dolosamente, ao pagamento de impostos - devidos não ao Estado brasileiro, mas aos quase duzentos milhões de cidadãos brasileiros – desde que essa dívida não ultrapasse a quantia de R$ 10.000.
Por outro lado, em apenas um semestre de estágio no Ministério Público de Minas Gerais, já vi dezenas de sentenças condenando à prisão, por vezes até no regime semi-aberto, pessoas acusadas de furtarem quantias ínfimas, às vezes inferiores a cinqüenta reais. Já tive contato com um caso em que o juiz condenou o réu a uma pena de dois anos de reclusão pelo furto de uma peça de picanha, pertencente a uma grande rede de supermercados. Ou seja, ao indivíduo que deixa de pagar R$ 10.000 aos cofres públicos, o perdão, ao ladrão de picanha, a prisão!
Com todo o exposto, quero apenas deixar algumas indagações aos leitores do blog: será que estamos tão distantes do “kanun”, ou será que, nós também - herdeiros de mais de 2.500 anos de racionalidade ocidental – também não sabemos perdoar? Nosso direito, sob um ponto de vista humanístico, é desprovido de atrocidades, ou apenas não conseguimos enxergá-las, da mesma forma que o camponês do interior da Albânia, durante séculos, não percebeu a barbárie que era a divida de sangue? E, principalmente, quem mais se beneficia com o (não) perdão, nas poucas hipóteses em que nossa legislação o concede?
Sem dúvida alguma um belíssimo texto.
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